sexta-feira, 29 de abril de 2016

O prédio mágico (parte 2).

Costumava atravessar aquele portão azul religiosamente as sete e trinta da manhã, e fazia isso de segunda a segunda-feira. Nos dias úteis, antes de acessar as dependências do já descrito prédio vermelho, ficava eu, por cerca de vinte minutos, lá do outro lado da rua, descansando solene sobre um velho caixote de madeira, absorvendo toda a energia que o sol ali despejava, em silêncio, tragando com evidente prazer cada partícula de cada elemento viciótico encruado nas víceras do insubstituível cigarro amarelo que a Souza Cruz me fornecia por módicos dois reais ou menos, lembro que a bebida alcoólica, ingerida as pressas no meio do caminho, potencializava o prazer que sentia a cada nova tragada. Meus pulmões inflavam quase que ao ponto de estourar e meu cérebro agradecia por isso.
Nesse momento, phones de ouvido conectados a um Walkman de carcaça prateada levavam à minha cabeça o que havia de melhor no universo do Rock n' Roll, enquanto me permitia viajar naqueles riff's, gritos, solos e arpejos, com o olhar protegido por um par de óculos nada atraentes, varria todo o perímetro a minha volta, já tinha decorado as placas dos poucos automóveis e motocicletas que por ali passavam naquele horário, eram sempre os mesmos veículos assim como eram sempre as mesmas pessoas em suas direções. Meu olhar também capturava as feições e vestimentas de todo mundo que ao meu redor transitava, a exemplo dos automotores, eram sempre os mesmos transeuntes. Me chamava muito à atenção uma loira de meia-idade, estilo mãe solteira, físico de atleta e pressa de executiva, ela passava exatamente a minha frente, na mesma calçada, chegava a sentir o ar que seu delicioso corpo deslocava e me perdia no doce perfume que usava, meu Deus...
...rogava por um bom dia daquela mulher loira já que a minha pequinês me privava de tal cumprimento, quem era eu perto daquela beldade? Na certa o meu bom dia  passaria em branco, atravessaria o ar e acertaria o extenso muro do prédio vermelho.
De forma sistemática, pessoas e mais pessoas iam brotando de suas esquinas costumeiras, algumas tomadas pelo desânimo, pela preguiça, outras por uma alegria invejável, essas gritavam e sorriam como se aquela manhã fosse delas, enfim, centenas de pessoas chegando ao mesmo tempo, todas com o mesmo uniforme, porém cada uma ao seu próprio estilo, as sete e trinta tocava uma sirene aterradora e ai daquele que não rompesse o portão azul assim que o mesmo fosse aberto. As sete e trinta o prédio vermelho acolhia a todos, inclusive eu.
Lentamente me levantava, lentamente tragava o que ainda restava do cigarro, lentamente desligava o Walkman e desacoplava os phones de ouvido, lentamente inspirava as últimas partículas do perfume da loira e lentamente suspirava, lentamente atravessava a rua e sempre escarrava no meio dela, ao chegar ao portão, lentamente a meia-dúzia de pessoas dizia: - Bom dia...

sábado, 23 de abril de 2016

Bom dia, bang bang!

Tudo parecia normal naquela manhã de segunda-feira. O céu estava limpo e ainda era possível ver as últimas estrelas brilhando muito timidamente entre um ou outro pequenino floco de nuvem branca, corria uma brisa agradável e misturado a essa brisa, canções de vários tipos de pássaros.
Pessoas iam de um lado para o outro ao seu próprio ritmo, algumas tomavam o rumo dos seus trabalhos, outras de suas escolas, não eram poucas as de maior idade cuidando da própria saúde por meio daquelas frágeis passadas, no entanto eram raros os chamados ''atletas amadores'', embora oferecesse aquela manhã condições propícias para uma baita de uma corrida, alí não se vira nenhum.
Como já era de se esperar, os portentosos comerciantes ergueram as portas dos seus estabelecimentos certos de que, ao final daquele dia, suas caixas registradoras estariam para lá de abarrotadas, literalmente cuspindo o que chamam de grana viva. Pilhas de jornais ocupavam quase todo o espaço no interior daquelas bancas cujos donos eram, em sua maioria, senhores sorridentes e bonachões. Nos balcões dos botequins, copos cheios de café preto acompanhavam os suculentos pães aquecidos a chapa e maços de cigarros do filtro amarelo, entre uma tragada e uma golada, seus apreciadores discutiam o futebol. Supermercados já se preparavam para atender seus clientes, nas portas das agências bancárias, pequenas filas já se formavam, os açougueiros já desciam as lâminas nas carnes e os bicheiros carimbos e canetas nos talões, até a turma da malandragem já começava a dar as caras.
O trânsito como sempre dava nó, a medida que o sol ia subindo os veículos iam se multiplicando e dessa maneira, os sons dos motores e gritos das buzinas, tomavam o ambiente antes ocupado pela cantoria dos pássaros....tudo parecia normal naquela manhã de segunda-feira se não fosse por aquele sujeito armado até os dentes.
Primeiro ele soube passar despercebido, a camiseta com a imagem do Papa Francisco somada ao terço que trazia no pescoço, davam à ele uma espécie de green card para ir e vir sem ser incomodado, então, para ele não foi nada difícil acessar aquele prédio cuja quantidade de pessoas naquela ocasião já era bastante razoável.
...........CONTINUA.

domingo, 17 de abril de 2016

Xadrez.

Olha lá o pião, prostrado ao lado de outros iguais a ele, todos sobre um mesmo tabuleiro, um tabuleiro pequeno para todos. Ao vê-los assim perfeitamente alinhados, me vêm a cabeça um muro ou muralha, o de Berlim ou da China como queiram, um paredão intransponível, uma linha invencível, uma faixa forjada por célebres guerreiros, todos fidedignos ao seu Rei, porém, do outro lado do tabuleiro, logo a frente deles mesmos, há um outro muro, tão ou mais resistente que o deles, ambos se movem de maneira arrastada, lenta e silenciosa, um passo de cada vez, metro a metro, um em diração ao outro, todos fiéis ao seu próprio Rei, e quando se encontrarem bem no centro do campo de batalha, um dos muros inevitavelmente cairá, e seu Rei nada fará a não ser se esconder no mais profundo e escuro aposento de seu castelo.
Os possantes cavalos saltarão seus corpos, levando em seus dorsos aqueles que ainda têm vida, eles são velozes, pernas velozes e corações nobres, o escudeiro perfeito do blindado guerreiro. Eles não só saltarão os corpos aliados, por ordem dos seus senhores, eles pisotearão os inimigos, darão violentos coices nos miseráveis, quebrarão as costelas, pernas e colunas dos infelizes, e os cavalos do outro lado, obviamente farão o mesmo.
Basta rezar, pedir à Deus que aquele dia passe voando, que aquela batalha suma dalí, que aquele sangue não apodreça sobre aquele amaldiçoado tabuleiro. Há bispos para tal função, dois deles em cada reino, eles são a imagem e semelhança da fé, e rezam como que incansavelmente, são homens de alma pura assim declarava os mensageiros aos camponeses, são os olhos e ouvidos de Deus sobre esta terra e por via deles, os anjos vos resguardam, homens e mulheres, confiais neles e mal algum lhes encontrarás. Em meio a matança eles dizem ''com Cristo, de Cristo e em Cristo, idade de Cristo, morte e ressurreição de Cristo, salvai-os, Cristo'', no entanto o sangue no campo não para de jorrar.
Protejam-se nas torres! Elas jamais virão a baixo ou serão violadas pelas hordas do inimigo! Conduzam mulheres e criança para a torre! Elas resistirão!
As torres não caem, eis um afirmação fácil de se acreditar, como algo esculpido na rocha viria a baixo? Ainda que milhares de flechas e lanças e pedras arremessadas a tudo o que é distância a acertassem em seus alicerces, tal construção mal se abalaria, no entanto ela pode sim ser vencida, em algum momento suas provisões chegarão ao fim e qual dos seus refugiados suportarão tão cruel sede e fome?
Um amedrontado menestrel cruza apressado os longos e abandonados corredores do castelo que lhe abriga ancioso por encontrar a Rainha, seu Rei o ordernou, ''Vá, tolo no momento inutilizado, traga a minha senhora à mim!'', talvez seja essa a razão de toda aquela guerra, qual outra razão que não oferecer à mulher amada toda a riqueza do mundo? Eu, se caso Rei fosse, faria o mesmo, lutaria eu por cada feudo e peça de ouro existente a minha volta, lutaria só por ver minha Senhora coberta de jóias, tomada por pedras preciosas, comendo e bebendo do que há de melhor, vestida como se Deusa fosse, como se Fruta D'Ouro fosse, lutaria eu em nome de minha Rainha.

terça-feira, 12 de abril de 2016

O prédio mágico.

Era uma vez um prédio vermelho, não tão alto como um arranha-céu, mas alto o bastante para ser visto e contemplado a grandes distâncias. O vermelho que o revestia do primeiro ao último andar, quando exposto a luz do sol, brilhava como fogo selvagem e muitos até diziam que aquilo sim que era cor.
Seu formato era do tipo ''caixa de sapato'', um prédio incrivelmente robusto, largo e extenso, passava ele a impressão de ser tão seguro quanto um abrigo antiaéreo, um verdadeiro cofre, um forte apache ou castelo de pedras por assim dizer, e eu acreditava nisso, tanto acreditava que, quando nas suas dependências, me desligava por completo das desgraças lá fora. Foram quatro anos no interior daquele prédio, quatro anos construindo  boa parte do sujeito que sou agora.
No seu entorno havia um enorme descampado, pedaços deste era coberto por cimento, concreto e asfalto, em contrapartida, não eram poucos os pedaços de terra batida, nestes pequenas plantas, matos e até árvores de grande porte tinham o seu lugar. Nunca me preocupei em levantar tão irrisória questão, mas tenho certeza que, naquele descampado, cabia pra lá de duzentos automóveis, todos estacionados debaixo das sombras das árvores e também da sombra do próprio prédio. Um muro com cerca de três metros de altura cercava todo esse espaço, deixando apenas uma brecha de uns cinco metros de largura protegida ali por um portão azul feito do mais puro aço.
A leste, conectado a fortaleza vermelha, havia um pequeno prédio de cor branca, este nada mais era que um ''anexo'' e poucos faziam questão de por os seus pés nas suas epoeiradas salas e escuros corredores. Embora o seu formato fosse também como o de uma caixa de sapato, trazia este um aspecto frágil, seus três andares não significavam quase nada, eu mesmo batizei aquela patética caixa de fósforos como ''A ALA DOS LOUCOS'' e, definitivamente, torcia o nariz toda vez só de pensar em ir até lá. Uma pequena escadaria levava ao canto mais remoto daqueel anexo e no dia em que me vi naquele ambiente, pensei: - Puta merda, como alguém consegue estudar aqui?''.
Tanto o sol quanto a chuva castigavam a surrada quadra de esportes construída ao norte do bendito prédio vermelho, eu particularmente gostava muito de ''fritar'' naquela quadra, ali rolava um basquete ''das galáxias'' e  enquanto a maioria optava por cuidar dos seus próprios negócios, eu e mais meia-dúzia de lunáticos ficávamos alí, quicando e arremessando aquela desbotada bola da adidas. Vez ou outra surgia um grotesco palavrão, palavrão este logo repreendido por nós mesmos, ora, ainda que fossemos do tipo ''Filhos da Anarquia'', respeitávamos o que aquela instituição de ensino nos empunha.
...CONTINUA...

quinta-feira, 7 de abril de 2016

Sonhar não custa nada?

Não sei quanto a vocês, mas sou do tipo que costuma sonhar quase que todas as noites. Não que eu tenha um sono tão pesado assim, raramente bato na cama feito pedra e pra falar a verdade, não são poucas as madrugadas em que acordo de uma em uma hora só Deus sabe para o que, contudo, uma hora de sono já é mais que o suficiente para me fazer sonhar.
Contrariando as palavras dos notáveis médicos e cientistas, penso eu que os sonhos não são fragmentos de antigas lembranças ou reflexos de situações vividas pelo indivíduo naquele dia produzidos pela massa cerebral em estado de repouso, acredito que os sentimentos são os reais criadores dos sonhos. Por que estou dizendo isso?
Outro dia sonhei com uma espécie de realidade alternativa, nada de mais pra ser bem sincero, o sonho tratava do bairro onde moro, sim, o bairro de nome Coelho Neto, localizado na zona norte do Rio de Janeiro. O cenário era noturno e era época de carnaval, havia um batalhão de pessoas fantasiadas por todos os lados, no lugar dos pequenos comércios, havia dezenas de pub's como aqueles vistos nos seriados americanos e também enormes joalherias e luxuosos restaurantes. O governo havia construído suntuosas passarelas, todas feitas de mármore e prata, todas ornadas com belíssimas luzes coloridas e um aprazível perfume que vinha sei lá de onde, o asfalto que corria sob estas passarelas era liso e sinalizado, um convite para uma boa disputa de motores, mas todos os veículos que por ali passavam, muito mal barulho faziam. A praça, além de vasta e cheia de canteiros com todo o tipo de flor, contava com uma infinidade de bancos de madeira brilhosa e mesas para repousar tudo o que é objeto. No sonho não havia preocupação, saudade ou dor, não havia motivo algum para desejar sair dali, a garota que me acompanhava era, sem dúvida, a mais linda do bairro e certamente de toda a cidade e fora isso, era eu respeitado e idolatrado por todos, trazia no nome um peso incomensurável..acho que era eu o dono de tudo aquilo.
Claro que nem sempre o sonho é bom, os pesadelos são figuras frequentes, perdi as contas das vezes em que fui dilacerado por algum demônio carniceiro ou esmagado por alguma máquina dantesca, já me afoguei um milhão de vezes, já me queimaram vivo, me bateram até os ossos virarem poeira, me cuspiram no rosto, já estouraram a minha cabeça com todas as armas de fogo vistas na face da Terra, já até me prenderam a cruz, no entanto, todas as vezes que despertei de uma coisa assim, acabei sorrindo de orerlha a orelha. No fundo não há pesadelo pior que acordar depois de um sonho bom...O sonho machuca, o pesadelo diverte.

domingo, 3 de abril de 2016

Ponto de vista.

Imagine que você é um ponto, um minúsculo ponto feito com a extremidade da mais fina caneta esferográfica ou bico de pena se esta lhe parecer mais estilosa, um ponto cuidadosamente colocado bem no centro do planeta Terra, sem nenhum centímetro para um lado ou para o outro, você está ali, desenhado no ''marco zero'' de tudo o que existe. Esse é seu ponto de vista em relação ao mundo que te cerca, assim como este é o ponto de vista de cada um de nós.
Imagine agora o seguinte, você dar um passo na direção que lhe parecer melhor, esse passo deve ter cerca de quarenta centímetros, um pouco menos, um pouco mais, não importa, o fato é que você se deslocou no campo da existência, porém a sua impressão é que o mundo deslizou sob os seus pés e rapidamente se ajustou à posição anterior, do seu ponto de vista você ainda permanece no chamado marco zero. Você entende que a vida se moldou à você, então você dar outro passo e mais outro e assim por diante, e toda vez a existência se adapta à você, colocando-o naturalmente no ponto de partida.
Os dias vão passando, as semanas vão sendo rompidas, os meses bravamente vencidos e você lá, fazendo suas escolhas a todo o momento, decidindo por quais direções seguir, exitando em algumas, eufórico em outras, mas sempre se movimentando. Sem perceber, você percorre quilômetros mundo afora, vêm pra cá, vai pra lá, sobe, desce, dobra esquinas, cruza avenidas, adentra prédios ´públicos e privados, adentra elevadores, transportes ferroviários, escadarias, passeios, passarelas, enfim, você quase não para, e ainda que pare, vira e volta centímetros são varridos por sua persona, você vai ao banheiro e também à cozinha, e veja você...sob os seus pés a existência, incansavelmente, te aloja ao ponto inicial, não há como se livrar dessa coisa, você está vivo e enquanto vida tiver, será dessa forma...esse é seu ponto de vista, sua percepção sobre as coisas, porém uma coisa é preciso ser dita, você é apenas um pequenino ponto no meio disso tudo, têm os outros a sua volta, têm eu, por exemplo, têm aqueles que você conhece e também os que desconhece, têm até aqueles que você deseja ver morto ou falido, que você faz a caveira sem a menor cerimônia, e cada um de nós, queira você ou não, também é como um minúsculo ponto colocado ao marco zero da Terra...o propósito da existência é se moldar também a cada um de nós, e vai por mim, meu caro, ela se molda.
Se quer saber de uma coisa, eu mesmo já me proclamei o centro do universo várias vezes, já pensei até que era o Deus que todos tanto clamam, já me vi como uma personagem no meio de uma história que machuca e faz chorar, já me imaginei simplesmente como uma espécie de luz, uma energia cuja função é apenas ''passar''...puxa vida!...não foram poucas as vezes em que o meu ponto de vista nublou minha razão, mas é óbvio que abraço a idéia de ser nada mais que um ponto irrisório e por esse motivo respeito e entendo o seu ar de dono do mundo.