segunda-feira, 7 de março de 2016

A ligação.

Pouquíssimas são as vezes em que o meu telefone toca. O fixo então parece estar sem vida a mais de cinco anos, na verdade este é como um pobre doente em estado terminal, um reles morimbundo prostrado num frio leito de um c.t.i. qualquer, inerte, inserido num triste coma profundo, respirando com o auxílio dos aparelhos, contudo, o fixo, embora silenciado, ainda está vivo e muito bem vivo, por sinal.  Por ele correm as incontáveis células elétricas ou eletrônicas (nunca sei ao certo), traduzidas pelos mais notáveis engenheiros do dia a dia como bytes. Se não fosse pela internet correndo em seus cabos, eu mesmo já teria dado um destino à este caríssimo telefone residencial.
Que início de texto mais esquisito!
É verdade, concordo plenamente com você, mas acontece que o meu telefone celular tocou não faz nem quarenta minutos e antes que você me pergunte, já te falo, sim, era ela, mesmo sem querer ou saber, me arrancando do banho as oito e meia da noite.
Trim! Trim! Trim!
Por debaixo das revigorantes águas mornas, expelidas aos montes pelo chuveiro elétrico, ouvi esta campainha rugindo feito uma desejosa gata no cio, lá na mesinha de centreo, mesinha essa alojada entre dois velhos sofás de couro marrom.
- Puta merda! Quem estaria me ligando a essa hora?
Me perfuntei, mas ainda são menos de nove da noite, e isso sim são horas de ligar para os outros! É verdade, tenho que reconhecer que, nesse instante, muitos já estão em seus lares depois de um longo dia de labuta.
- Então vai lá atender...
...sozinho em casa, pouco me importei com a nudez que me encontrava naquele momento. Deixei o chuveiro ligado no máximo e corri feito um bandido em fuga rumo a sala de estar. O telefone estava lá, TRIM! TRIM! TRIM! Se esgoelando. Tenho certeza que se o infeliz pudesse falar o meu idioma, certamente diria algo do tipo ''Corre aqui, porra! Deixa de ser murrinha! Daqui a pouco a pessoa vai desistir!'', mas eu já estava correndo e por causa disso, no instante em que coloquei os pés molhados no liso piso negro da cozinha, quase me estatelei no chão. De forma patética, derrapei feito um carro de corrida entrando a mil numa curva fechada. Se eu caísse ali, certamente seria uma tragédia, a geladeira seria meu primeiro alvo, a derrubaria na hora e por vingança, a miserável despencaria sobre mim, na certa quebrando todos os ossos de meu corpo, mas, por sorte ou piedade divina, segurei na curva e passei ileso por aquela medonha situação...cheguei a sala de estar e lá estava o escandaloso aparelho celular, com o seu display iluminado, vibrando como nunca, implorando por minha chegada.
- Alô! - Disse eu ofegante, a água do banho agora se misturava ao suor da corrida, sem dar atenção, molhei a droga do telefone.
- Oi, tudo bom? - Disse uma voz que a tempos eu já não ouvia mais, quase não a reconheci...por isso, meio que sem jeito, perguntei:
- Estou bem, mas - limpei a garganta - com quem eu falo?
- Puxa vida! Já nem sabe quem sou, né? - Disse a voz com um sorriso amistoso.
- Ana? - Usando das minhas doces lembranças, fui bem direto.
- Ah, lembrou! Sim, sou eu, a Ana.
- Nunca me esqueci de você e se quer saber de uma coisa, parece que foi ontem a última vez que nos falamos.
- Verdade, mas lá se vão mais de cinco anos, né?
Sua voz continuava linda, embora o seu sultaque agora me soasse meio estranho (pura falta de costume apenas), e cada palavra dita por ela, eu apreciei como se deve apreciar algo de muito valor artístico.
- Seis anos e seis meses para ser mais exato. - Disse eu, mostrando à ela o quanto nossa história foi importante para mim.
Trocamos quase meia-hora de conversa e foi como se o tempo estivesse sido congelado, por várias vezes transitamos por caminhos diferentes, eu nunca deixei de querer aquela deliciosa Gata Branca e sutilmente me deixei entender tal condição, ela, por sua vez, já pertencia a um outro alguém, inclusive um pequeno filho homem  com esse alguém ela já tinha e já tinha a quase dois anos, então, agora eu, um sujeito calejado, respeitei essa torpe condição.
Engraçado que, acima de tudo, éramos bons amigos e por causa desse nobre laço social, dessa forma nos tratamos por vários momentos durante a ligação. Confesso que não foi de todo o mal assim, foi até bem agradável em certas partes, é evidente que  muita coisa mudou entre nós e por um segundo cheguei até a pensar que manter o clima amistoso em alta seria mesmo a melhor coisa a ser feita...ela deve ter pensado a mesma coisa...e, de fato, foi o que fizemos, então, meia-hora depois de um blá blá blá aprazível, ela disse:
- Então tá, rapaz, estou indo nessa!
Meio que a contragosto, porém firme no uso das palavras, respondi:
- Tudo bem, meu anjo, também preciso ir. - E brinquei dizendo: - Estou nú em pelos pra te falar a verdade.
Ela, linda que só, disparou uma lonfa gargalhada.
- Como assim?
- É que eu estava no banho quando o telefone tocou.
- Vixe, me desculpa! Não queria mesmo atrapalhar você!
- Você nunca atrapalha, Gata Branca, já disse... - E respirei fundo, ela sentiu e senti que ela também respirou.
- Gata Branca, anos que não ouço isso.
- Anos que não falo isso.
- Você também não atrapalha. - E disse assim como que querendo dizer outra coisa.
- O que houve? - perguntei com um fio de esperança atravessado em meu pescoço.
Um pequeno silêncio se abateu naquele instante, quebrado logo depois por um lento e solene suspiro e também pelas seguintes as palavras:
- Não, não foi nada, amor.
- Certo, Ana, então tá, quando quiser é só me ligar. - Voltei para o mundo real, o mundo do viver sozinho.
- Tá bom, ligo sim. - Ela também voltou, mas no seu mundo havia mais dois ao seu lado.
Antes do fim, perguntei:
- Ana, só um minutinho, por que você me ligou?
Subtamente a ligação caiu, na certa ela desligou.
É....pelo que a conheço, ela deve ter desligado mesmo...tudo bem, quem sabe ela volte a ligar algum dia...bom...
...nunca vesti uma roupa com tamanha felicidade e tristeza ao mesmo tempo.

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